Saturday

we might as well be strangers



detesto que já tenha que fazer um esforço para me lembrar de como era quando não conhecia a minha vida sem ti. quando tento trazer à memória alguns momentos passados contigo só consigo ver algumas imagens, despidas de sentimento. já não consigo sentir como era, percebes? sei que me fazias bem, que me tranquilizavas, que precisava de ti. mas e depois? consigo lembrar-me do teu sorriso quando eu entrava no teu carro..mas não do efeito que ele tinha em mim. sei que os abraços eram grandes, fortes e que nesses momentos me preenchias completamente. mas já não me lembro como era. lembro-me da nossa despedida, na minha sala, do silêncio esmagador, da falta de palavras, das (muitas) lágrimas, do não conseguir dizer adeus e virar as costas..mas e a angústia, como era, como a sentia? é como se estes anos se tivessem tornado numa simples fotografia. olho para ela, revejo tantas vezes os mesmos momentos, sei descrevê-los de cor, e as memórias congelam. já não consigo sair desses momentos, nem sequer sentir o que sentia. sei que olhavas para mim de uma forma especial, que não tinha vergonha de aparecer à tua frente desarranjada porque ainda assim me achavas bonita..lembro-me até que adorava o teu ar ensonado quando acordavas. e sei ainda que o que eu mais gostava era precisamente isso, acordar ao teu lado. mas o que é que eu sentia? lembro-me de algumas conversas ao telefone, no escuro, das confissões de amor trocadas entre lágrimas, de falar até adormecer. lembro-me que me tranquilizavas, mas não me lembro de que falávamos. lembro-me das tardes e noites naquele quarto despido, de conversarmos, durante horas, nus, com as pernas entrelaçadas. mas já não me lembro da sensação de não me querer separar do teu corpo, do calor que sentia com o teu toque, da tranquilidade que me invadia quando enrolava as pontas dos dedos nos teus cabelos. consigo visualizar a nossa conversa naquele café, consigo lembrar-me da tua expressão que se transfigurava enquanto as palavras saíam da minha boca, sei que saíste a correr sem dizer adeus e que eu fiquei. mas já não me lembro de sentir o peito a queimar, de não ter força nas pernas para me levantar, de sentir que os olhos estavam secos enquanto eu sangrava por dentro.
mas, se as lembranças estão lentamente a desaparecer, porque é que eu sinto que a saudade se torna cada vez mais esmagadora?

Thursday

the hardest part was letting go

[retalhos de uma vida]


A sala que aos poucos se tornou nossa, onde eu e o T. acabávamos as noites a comer bolachas-maria com leite e a comentar os acontecimentos, onde obrigávamos o P. a ver Ally McBeal a horas impróprias, onde nos despedimos das gurias, onde surgiu a primeira conversa com o D., onde todos os nossos amigos se sentaram nos inúmeros jantares que lá aconteceram. As refeições na varanda, o jantar a três com a E. e a E., os cozinhados da P., as discussões com o G., o delírio com o T. ao som dos Gorillaz..


A casa dos nossos vizinhos mais queridos. O bacalhau à Gomes Sá da A., a festa surpresa do L., as coreografias da M., as sessões de Ally McBeal com a A. e a M., as conversas sobre o turco. A chegada da C. e da E., novas amizades que começam a desabrochar, a partida do F., o início do fim.


Regressar da Sardenha e sentir-me em casa quando volto a ver a Praça da Catalunha. Despedir-me aqui do A. com um "hasta pronto!" gritado enquanto ele corria para apanhar o autocarro. A noite com o D., nestes bancos, a conversar até demasiado tarde sobre assuntos demasiado sensíveis.


A primeira saída com as primeiras pessoas que conheci nesta cidade. A constante sensação de possibilidade, de adrenalina, de que tudo pode mudar a qualquer altura. Sentir-me em erasmus e ser totalmente preenchida por essa realidade. As primeiras conversas com a E., o nascer de uma amizade.


A casa do M. O piano, o Buena Vista Social Club, a intimidade e carinho que cresciam de dia para dia. A noite na Plaza del Rey com uma cerveja, um músico e uma conversa. As saudades..


Deambular pela cidade e sentar-me a ouvir quem toca por detrás da catedral. Passear por aquelas ruas com a G. numa noite em que o coração estava apertado, e sermos surpreendidas por um saxofonista a tocar, sozinho, para ele próprio. Tentar não perturbar o seu momento e flutuar ao som da sua música..


Sair do trabalho e vir a pé para casa, evitando a multidão das ramblas e tentando sempre passar por ruas desconhecidas. Passar na padaria e comprar as melhores baguetes de Barcelona. Comê-las com doce de morango em casa, enquanto contava à P. as aventuras do meu dia e ela me mostrava os progressos do seu caderno. Decidir o que jantar e ir ao Dia fazer as compras de última hora.


Descobrir esta praça por puro acaso, numa tarde em que explorava o bairro gótico. Mostrá-la ao T. e à M. num dia em que se celebrava um casamento. Assistir à chegada da noiva, ficar registrado nas fotografias a nossa presença naquele dia tão importante para aquelas duas pessoas. Mostrar aquele sítio a todas as pessoas que me iam visitar. O dia em que fui com o M. e fomos recebidos por uma chuva de flores amarelas que caíam das árvores, enquanto o som da água da fonte ecoava naquela praça carregada de História.


O meu quarto. As várias mudanças até ficar ao meu gosto. As fotografias e lembranças que aos poucos tomaram conta das paredes. A surpresa que eles me prepararam na noite dos meus anos e que me arrancou as últimas lágrimas que tinha para chorar. A noite em que a G. foi lá dormir e em que a senti mais próxima que nunca.
O ter de arrumar tudo numa mala até deixar o quarto vazio. A primeira vez que vi lágrimas na cara do G., por também estar a desfazer o seu quarto. Sentar-me na cama e continuar a senti-lo meu, mesmo assim, despido.